quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Por uma fé em Deus e nos homens

Neste texto, Andreas Lind, antigo aluno da licenciatura em Filosofia da FacFil, revisita a questão sempre actual da relação entre a Filosofia e a Teologia, a Razão e a Fé. O pretexto para esta incursão é o discurso do Papa Francisco no Parlamento Europeu e os frescos de Rafael representando Filósofos e Teólogos num cenário convidativo ao diálogo.

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No seu rico e denso discurso recentemente pronunciado no Parlamento Europeu, entre tantas imagens sugestivas, o Papa Francisco levou-nos a admirar a célebre "Escola de Atenas" de Rafael. Nela, vislumbramos Platão e Aristóteles, circundados por toda uma vasta tradição de filósofos pagãos. Os dois, bem ao centro, caminham dialogando um com o outro. Enquanto que Platão aponta para o céu, o seu discípulo estende a mão para baixo. Deste modo, revela-se, segundo o Santo Padre, uma conexão inseparável entre o céu e a terra, que deveria hoje preservar-se: a abertura a Deus deve estar ligada ao cuidado para com as situações concretas que o homem vive.

Na "Stanza della Segnatura" dos museus do Vaticano, onde se encontra a "Escola de Atenas", reparamos que Rafael pintou, à sua frente, outro fresco, no qual teólogos cristãos discutem sobre a presença real de Cristo na Eucaristia; no fundo, sobre a presença de Deus no mundo. Assim, o pintor renascentista faz-nos recordar como a filosofia helenista foi acolhida pela tradição teológica cristã.
Trata-se de uma atitude de abertura para com uma tradição pagã, que hoje parece já não nos surpreender mais. Com efeito, para muitas das pessoas que visitam aquela "Stanza" no Vaticano, e se deixam ali ficar a admirar a presença de São Tomás, de Santo Agostinho, de Santo Ambrósio, ali bem próximos de Platão e de Aristóteles, até lhes parece normal. Contudo, tal cenário não foi sempre evidente. Nos primórdios da Igreja, muito se discutiu, de facto, sobre o valor de uma tradição filosófica, como a grega, cujas raízes não se fundavam na Revelação bíblica. Porque não ficar só com a sagrada Escritura? Não basta o que disseram os profetas de Israel e os apóstolos a quem Cristo confiou a Sua Igreja? Para quê valorizar a filosofia pagã dos gregos?
Trata-se realmente de uma opção, “fundamental” e “primordial” segundo Ratzinger, que o cristianismo estabeleceu pelo "Logos". No contexto cultural próprio do antigo império romano, a religião era vista como uma "religio pubblica" na qual se celebravam mitos sem correspondência com uma verdade histórica. Assim, acabou-se por permitir uma prática religiosa devocional que se separava da filosofia e da razão, a partir da qual o homem procurava chegar à verdade.
Os cristãos optaram, seguindo a linha argumentativa de Ratzinger, pela filosofia, pelo "Logos", em detrimento do "mythos", veemente criticado por uma tradição filosófica pagã, à qual os cristãos de certa forma aderiram. É certo que, na mesma "Stanza della Segnatura", Rafael também pintou Apolo e Aria, valorizando assim a poesia na qual o mito se expressa. Sim, esta “opção fundamental” pelo "Logos" não foi tomada num sentido exclusivista. Trata-se, essencialmente, de não separar a devoção religiosa pública e pessoal da verdade que podemos compreender enquanto homens.
Neste sentido, parece-me que devemos, hoje, fazer memória desta opção primordial, pela qual muitos dos primeiros cristãos, ao se recusarem a aceitar as práticas de uma devoção religiosa que, não sendo verdadeira, seria apenas idolatria, acabaram por pagar o preço do martírio, oferecendo a própria vida segundo as exigências da sua fé.
Creio que recordar esta opção, não só nos leva a ter presente a radicalidade da entrega de quem crê, mas, sobretudo, a ganhar consciência de que o crente num Deus, cujo Espírito penetra toda a realidade criada, tende a acolher o mundo e os outros, oferecendo a vida pela sua salvação.
Realmente, acreditar que os conteúdos da fé cristã são universalmente verdadeiros implica que sejam compreensíveis e relevantes para todos os homens. Ou seja, Platão e Aristóteles, na sua procura sincera da verdade, do Bem, das coisas eternas, no fundo, procuravam Deus e, nesse caminho, chegaram muito longe, através da razão humana, a qual participa no "Logos" divino. Por isso mesmo, São Justino, na sua apologia do cristianismo, enviada ao Imperador romano António Pio, chegou mesmo a apelidar Sócrates de “cristão”, na medida em que o filósofo grego terá sido um homem que viveu segundo o Logos. De facto, o próprio São Paulo diz que “Deus se manifestou a eles. Desde a criação do mundo, Sua condição invisível, Seu poder e divindades eternos, se tornam acessíveis à razão para as criaturas” (Rm 1, 19-20). E, na mesma epístola aos Romanos, o apóstolo dos gentios acrescenta: “Quando pagãos, que não têm a lei, cumprem espontaneamente o que a lei exige, não tendo a lei, eles são sua lei, já que demonstram levar as exigências da lei gravadas no coração” (Rm 2, 14).
Trata-se, então, de uma fé que acredita nos homens e na sua capacidade de chegar à verdade; portanto, de uma fé que não se separa do mundo. Uma fé que não pode ser uma mera devoção privada, reduzida ao sentimento pessoal e subjetivo do crente: este deve ser capaz de a anunciar e de a tornar credível perante o mundo. Estamos, então, perante um credo que o mundo possa compreender e que seja capaz de viver. Um credo que seja relevante às aspirações do mundo, que respeite o homem e que vá ao encontro das suas inquietações. Sem dúvida, uma atitude de abertura e diálogo em relação a tradições diferentes. Realmente, acreditar que todos os homens, independentemente das tradições religiosas ou filosóficas a que pertençam, participam no "Logos" divino, implica esta atitude dialogante com o mundo. Não se trata apenas de acreditar em Deus, mas de viver uma fé que confia no mundo e nos homens, tal como São Justino confiou em Sócrates e respeitou a filosofia grega.
Regressando ao discurso do Papa Francisco no Parlamento Europeu, podemos compreender agora o encorajamento do Santo Padre no sentido de retornarmos ao espírito dos fundadores da União Europeia, baseado na capacidade de trabalhar em conjunto, e de superar as divisões existentes, na construção de uma paz duradoira. Sem esquecer, como tenho vindo a dizer, que esta atitude de abertura e diálogo pressupõe o respeito absoluto pela pessoa humana; o respeito, pode dizer-se ‘sagrado’, da sua dignidade e dos seus direitos inalienáveis.

(Texto originalmente publicado no blog essejotanet)

Andreas Lind, sj | 10.01.2015

sábado, 17 de janeiro de 2015

Relevância da mundividência satírica


De facto, não é possível compreender a literatura ocidental sem a presença da SÁTIRA, desde a Antiguidade até aos nossos dias. Nas suas variadíssimas modalidades de expressão, o modo satírico é uma forma de olhar e de dizer o mundo e o homem. É uma forma de empenhamento e de intervenção social, entre outras, de exercício da função pública do escritor, parafraseando Edward Said.

Tantas vezes com contundência certeira e não menor dose de utopia, no processo de construção de um mundo melhor. Mas sobretudo como exercício de liberdade (com respeito pelo outro) e demonstração de humanidade. Afinal, rir é próprio do homem (Aristóteles). "Ridendo castigat mores"...

Neste contexto, vale a pena ler o recente texto de Alberto Manguel, no suplemento "Babélia" do jornal madrinelo El País
http://cultura.elpais.com/cultura/2015/01/14/babelia/1421260399_642738.html

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Gonçalo M. Tavares, "Uma Viagem à Índia": une parodie postmoderne du désenchantement

Artigo publicado pelo docente Cândido Oliveira Martins na revista Les Langues Néo-Latines, Paris, nº 369 (2014), pp. 33-46 [ISSN: 0814-7570]

Resumo

A obra Uma Viagem à Índia (2010) de Gonçalo M. Tavares dialoga intertextualmente com certa tradição épico-narrativa ocidental, sobretudo renovando o género, à luz de uma radical inventividade e de uma singular apropriação de Os Lusíadas de Luís de Camões. Com essa relação dialógica, num misto de homenagem e de superação, e servindo-se do motivo de uma alegórica e introvertida viagem à Índia, constrói uma contra-epopeia deceptiva, imbuída da melancolia dos tempos pós-modernos.

Outras publicações recentes do corpo docente.

Juazeiro do Norte e a religiosidade popular

Juazeiro do Norte - Ceará/Brasil, 17-21.Nov.2014

O IV Simpósio dedicado ao “fenómeno Pe. Cícero”, em Juazeiro do Norte (Ceará/Brasil), propôs uma reflexão mais aprofundada sobre o significado que envolve a personagem à volta da qual tudo se aglutina na progressiva cidade de Juazeiro do Norte, a nível social, político, económico, intelectual, religioso e cultural. A localidade constituiu-se como polo de irradiação e de atracção cultural, social e religiosa, bem como polo de desenvolvimento dos sertões nordestinos brasileiros. Anualmente, entre dois e três milhões de romeiros visitam Juazeiro, motivados pelo culto ao Padrinho Pe. Cícero (“Padim Pade Ciço”).

Ao pensar o fenómeno Pe. Cícero em termos nacionais e globais, que era o objectivo central proposto para este evento, de imediato perspectivei a minha participação para o tema da religiosidade popular. Predominaram as apresentações de estudos de carácter antropológico, sociológico e histórico, em geral ligadas a trabalhos de investigação; o número e a qualidade de estudos científicos já realizados não deixam indiferente a quem procurar compreender o significado religioso, cultural e social de todo este processo que teve início nas últimas décadas do séc. XIX. Muitas outras comunicações, pósteres e oficinas, preparadas por grupos de trabalho, evidenciaram a vitalidade e o interesse académico na continuidade desta investigação, com o envolvimento e investimento da mais antiga instituição universitária da região, a Universidade Regional do Cariri (URCA).

O contributo da reflexão que apresentei, inspirada na filosofia da religião dos últimos séculos em Portugal, foi orientado pelo tema assim enunciado: Pensar e viver o sagrado nos dias de hoje? No contexto da pergunta sobre o sentido/significado do sagrado nos dias de hoje, a ideia orientadora da palestra foi a seguinte: “A vitalidade das manifestações da religiosidade popular, como a de Juazeiro do Norte, constitui um dos sinais mais autênticos e mobilizadores da renovação religiosa que hoje vivemos, anunciando a transformação radical da civilização actual, e é marcada mais pela experiência espiritual individual e colectiva do que pelo cumprimento de directivas oficiais das instituições religiosas.” Acompanhando o processo de valorização científica e de sacralização da cultura, e recorrendo aos contributos dos filósofos e literatos mais significativos que experienciaram as mudanças históricas do Portugal contemporâneo, foi possível fazer uma aproximação mais intensa à essência do sagrado, bem mais próxima da religiosidade popular do que das religiões oficiais. Sem deixar, no entanto, de orientar para a questão em aberto: Na perspectiva do futuro, será esta irrupção do sagrado a “medida” de qualidade de vida e de autenticidade do “humano” que vai devolver a esperança renovada de uma humanidade mais justa e mais solidária?

Duas afirmações sobre a concepção da religião e da natureza intrinsecamente religiosa do ser humano, que estiveram presentes na reflexão desenvolvida na palestra: - Eduardo Lourenço afirmou recentemente (2014) que a “dimensão «religiosa» faz parte daquilo que é a definição do homem”, na linha das conclusões defendidas por Georg Simmel, em finais do séc. XIX, e que desenvolve mais tarde na obra Die Religion (1906): “O homem é naturalmente religioso. A religiosidade é um modo de ser do homem, quer ela tenha, agora, um conteúdo, ou não, quer esta característica possa ser incorporada ou não, numa fé. Assim como é inteligente, erótico, justo ou belo, assim é religioso: o ser religioso, portanto, é uma maneira primária, absolutamente fundamental, do ser.”

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

A Filosofia da Religião, por terras brasileiras

Folder do Simpósio

O IV Simpósio Luso-Brasileiro de Filosofia da Religião e Ciências da Religião realizou-se em São Paulo, na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), de 03 a 05 de Novembro de 2014. Foi organizado pelo Programa Pós-Graduado em Ciências da Religião – Grupo de Pesquisa Pós-Religare: Pós-Modernidade e Religião, sob a coordenação do Prof. Dr. José J. Queiroz, e em colaboração com o Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Religião, da Faculdade de Filosofia de Braga da UCP.
Os Simpósios anteriores: I - 2009, Faculdade de Filosofia de Braga, sobre o tema As dimensões da experiência religiosa na modernidade e pós-modernidade; II - 2010, PUC-SP, sobre A religião na modernidade e pós-modernidade: Interfaces, novos discursos e linguagens; III - 2012, Braga, com o tema Ética e religião na sociedade e cultura pós-secular.
O tema do Simpósio – Religião, Política, Laicidade: Desafios contemporâneos – foi trabalhado ao longo dos três dias, em quatro mesas temáticas, cada uma com intervenções de um investigador português e de um investigador brasileiro. Uma das tardes foi preenchida com cerca de 40 apresentações em torno das mesas temáticas, na sua maioria produzidas por alunos de programas de pós-graduação de diversas universidades e centros de investigação brasileiros.
Do programa de Filosofia da Religião da Faculdade de Filosofia, participámos três professores: João Duque, Manuel Sumares e José Gama; do programa de Ciências da Religião da Universidade Lusófona, participou o professor Paulo Mendes Pinto. Como impressão geral, fica o testemunho de uma agradável colaboração, em óptimo ambiente de convívio e de acolhimento pessoal e académico, com excelente nível científico que pautou o intercâmbio e as animadas discussões que as palestras proporcionaram.
A minha palestra estava enquadrada no tema da mesa 2 -Os direitos humanos emergentes na relação entre Estado Laico e Religião, e apresentei-a sobre a seguinte temática: O estado laico e o direito de religião - A “questão religiosa” em Portugal, do Liberalismo à República. Deixo o resumo do texto que será publicado nos anais do simpósio:    

Os direitos humanos, consagrados no art. 18.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, têm uma longa e complexa história, que abordaremos brevemente numa primeira parte, com algumas referências ao desenvolvimento do projecto da modernidade e correspondente processo de secularização e de laicização, que conduziu ao questionamento do “regresso do sagrado” na pós-modernidade.
Numa segunda parte, analisaremos a chamada “questão religiosa” que polariza em Portugal a discussão política e a reflexão filosófica, na viragem do séc. XIX para o séc. XX, em torno das relações entre o Estado e a Igreja (católica), acompanhando a evolução da nova fase do liberalismo até à implantação da república em 1910. Dois pensadores se destacam, Sampaio Bruno e Basílio Teles, com aportações filosóficas importantes na clarificação do direito de religião na sociedade democrática contemporânea e nas suas multifacetadas manifestações e interrogações, próprias de uma sociedade multi-religiosa e multicultural. A cidadania de diferenças não pode prescindir do diálogo crítico instaurador de futuro e da autocrítica na sua relação com o presente e com o passado. A religião não abdica do seu direito, ainda que ao lado da não-religião, e em luta contra o indiferentismo…

Os desafios contemporâneos que se colocam na investigação da Filosofia da Religião são suficientemente aliciantes para alimentarem a reflexão que a política e a laicidade motivaram nestes dias, e para continuarem a desafiar em futuros encontrosos complexos contornos humanos da experiência religiosa. O próximo encontro de colaboração entre a FacFil e a PUC-SP, ou o V Simpósio Luso-Brasileiro, ficou agendado para Janeiro de 2016, em Braga, sobre o tema Racionalismos, afetividades e experiências religiosas na contemporaneidade. Fica a sugestão e, desde já, o convite para uma participação ativa e criativa na reflexão sobre esta dimensão de transcendência inerente ao ser humano.
José Gama

Programa do Simpósio

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Slavoj Žižek: pensar o atentado ao "Charlie Hebdo"


A filosofia contemporânea não se alheia do que acontece hoje à nossa volta. Antes mostra a coragem de pensar "a quente" os acontecimentos enquanto problemas, a partir de várias perspectivas. 

Disso é exemplo o polígrafo e às vezes polémico Slavoj Žižek, ao refectir sobre o recente atentado em França: "quem não estiver disposto a falar criticamente sobre a democracia liberal deve também se calar sobre o fundamentalismo religioso."

Vale a pena ler, criticamente, o depoimento de Žižek sobre este assunto da actualidade, enviado por ele para o Blog da editora brasileira Boitempo: 

domingo, 11 de janeiro de 2015

Sucesso profissional na área da Filosofia e das Humanidades


Num frequente discurso de ideias-feitas e não confirmado pela realidade, tem-se repetido que os licenciados na área das Humanidades (como a Filosofia) não têm um bom futuro profissional.

Ora, opostamente, vamos verificando que grandes empresas privilegiam a aquisição de trabalhadores com formação na área das Humanidades. E há mesmo estudos que insistem numa ideia importante – a de que a formação nesta área é um investimento com retorno assegurado. 

Vale a pena reflectir sobre a questão, a partir do artigo publicado na influente revista Forbes: