Neste texto, Andreas Lind, antigo aluno da licenciatura em Filosofia da FacFil, revisita a questão sempre actual da relação entre a Filosofia e a Teologia, a Razão e a Fé. O pretexto para esta incursão é o discurso do Papa Francisco no Parlamento Europeu e os frescos de Rafael representando Filósofos e Teólogos num cenário convidativo ao diálogo.
---------------- & -------------
No
seu rico e denso discurso recentemente pronunciado no Parlamento Europeu, entre
tantas imagens sugestivas, o Papa Francisco levou-nos a admirar a célebre
"Escola de Atenas" de Rafael. Nela, vislumbramos Platão e
Aristóteles, circundados por toda uma vasta tradição de filósofos pagãos. Os
dois, bem ao centro, caminham dialogando um com o outro. Enquanto que Platão
aponta para o céu, o seu discípulo estende a mão para baixo. Deste modo,
revela-se, segundo o Santo Padre, uma conexão inseparável entre o céu e a
terra, que deveria hoje preservar-se: a abertura a Deus deve estar ligada ao
cuidado para com as situações concretas que o homem vive.

Na
"Stanza della Segnatura" dos museus do Vaticano, onde se encontra a
"Escola de Atenas", reparamos que Rafael pintou, à sua frente, outro
fresco, no qual teólogos cristãos discutem sobre a presença real de Cristo na
Eucaristia; no fundo, sobre a presença de Deus no mundo. Assim, o pintor
renascentista faz-nos recordar como a filosofia helenista foi acolhida pela tradição
teológica cristã.
Trata-se
de uma atitude de abertura para com uma tradição pagã, que hoje parece já não
nos surpreender mais. Com efeito, para muitas das pessoas que visitam aquela
"Stanza" no Vaticano, e se deixam ali ficar a admirar a presença de São
Tomás, de Santo Agostinho, de Santo Ambrósio, ali bem próximos de Platão e de
Aristóteles, até lhes parece normal. Contudo, tal cenário não foi sempre
evidente. Nos primórdios da Igreja, muito se discutiu, de facto, sobre o valor
de uma tradição filosófica, como a grega, cujas raízes não se fundavam na
Revelação bíblica. Porque não ficar só com a sagrada Escritura? Não basta o que
disseram os profetas de Israel e os apóstolos a quem Cristo confiou a Sua
Igreja? Para quê valorizar a filosofia pagã dos gregos?
Trata-se
realmente de uma opção, “fundamental” e “primordial” segundo Ratzinger, que o
cristianismo estabeleceu pelo "Logos". No contexto cultural próprio
do antigo império romano, a religião era vista como uma "religio
pubblica" na qual se celebravam mitos sem correspondência com uma verdade
histórica. Assim, acabou-se por permitir uma prática religiosa devocional que
se separava da filosofia e da razão, a partir da qual o homem procurava chegar
à verdade.
Os
cristãos optaram, seguindo a linha argumentativa de Ratzinger, pela filosofia,
pelo "Logos", em detrimento do "mythos", veemente criticado
por uma tradição filosófica pagã, à qual os cristãos de certa forma aderiram. É
certo que, na mesma "Stanza della Segnatura", Rafael também pintou
Apolo e Aria, valorizando assim a poesia na qual o mito se expressa. Sim, esta
“opção fundamental” pelo "Logos" não foi tomada num sentido
exclusivista. Trata-se, essencialmente, de não separar a devoção religiosa
pública e pessoal da verdade que podemos compreender enquanto homens.
Neste
sentido, parece-me que devemos, hoje, fazer memória desta opção primordial,
pela qual muitos dos primeiros cristãos, ao se recusarem a aceitar as práticas
de uma devoção religiosa que, não sendo verdadeira, seria apenas idolatria,
acabaram por pagar o preço do martírio, oferecendo a própria vida segundo as
exigências da sua fé.
Creio
que recordar esta opção, não só nos leva a ter presente a radicalidade da
entrega de quem crê, mas, sobretudo, a ganhar consciência de que o crente num
Deus, cujo Espírito penetra toda a realidade criada, tende a acolher o mundo e
os outros, oferecendo a vida pela sua salvação.
Realmente,
acreditar que os conteúdos da fé cristã são universalmente verdadeiros implica
que sejam compreensíveis e relevantes para todos os homens. Ou seja, Platão e
Aristóteles, na sua procura sincera da verdade, do Bem, das coisas eternas, no
fundo, procuravam Deus e, nesse caminho, chegaram muito longe, através da razão
humana, a qual participa no "Logos" divino. Por isso mesmo, São
Justino, na sua apologia do cristianismo, enviada ao Imperador romano António
Pio, chegou mesmo a apelidar Sócrates de “cristão”, na medida em que o filósofo
grego terá sido um homem que viveu segundo o Logos. De facto, o próprio São
Paulo diz que “Deus se manifestou a eles. Desde a criação do mundo, Sua
condição invisível, Seu poder e divindades eternos, se tornam acessíveis à
razão para as criaturas” (Rm 1, 19-20). E, na mesma epístola aos Romanos, o
apóstolo dos gentios acrescenta: “Quando pagãos, que não têm a lei, cumprem
espontaneamente o que a lei exige, não tendo a lei, eles são sua lei, já que
demonstram levar as exigências da lei gravadas no coração” (Rm 2, 14).
Trata-se,
então, de uma fé que acredita nos homens e na sua capacidade de chegar à
verdade; portanto, de uma fé que não se separa do mundo. Uma fé que não pode
ser uma mera devoção privada, reduzida ao sentimento pessoal e subjetivo do
crente: este deve ser capaz de a anunciar e de a tornar credível perante o
mundo. Estamos, então, perante um credo que o mundo possa compreender e que
seja capaz de viver. Um credo que seja relevante às aspirações do mundo, que
respeite o homem e que vá ao encontro das suas inquietações. Sem dúvida, uma
atitude de abertura e diálogo em relação a tradições diferentes. Realmente,
acreditar que todos os homens, independentemente das tradições religiosas ou
filosóficas a que pertençam, participam no "Logos" divino, implica
esta atitude dialogante com o mundo. Não se trata apenas de acreditar em Deus,
mas de viver uma fé que confia no mundo e nos homens, tal como São Justino
confiou em Sócrates e respeitou a filosofia grega.
Regressando
ao discurso do Papa Francisco no Parlamento Europeu, podemos compreender agora
o encorajamento do Santo Padre no sentido de retornarmos ao espírito dos
fundadores da União Europeia, baseado na capacidade de trabalhar em conjunto, e
de superar as divisões existentes, na construção de uma paz duradoira. Sem
esquecer, como tenho vindo a dizer, que esta atitude de abertura e diálogo
pressupõe o respeito absoluto pela pessoa humana; o respeito, pode dizer-se
‘sagrado’, da sua dignidade e dos seus direitos inalienáveis.
(Texto originalmente publicado no blog essejotanet)
Andreas
Lind, sj | 10.01.2015